sexta-feira, 24 de fevereiro de 2017

enseñanzas

A gente nunca tem as pessoas. E isso significa que em qualquer momento elas podem não estar aí, e estar em outro lugar. E isso quer dizer que contar com o outro vai ter que ser um conceito mais abrangente de ter um ombro pra chorar quando for a hora. Acho que quando for a hora muito possivelmente não vai ter. Duas amigas que eu admiro muito me ensinaram isso de maneira amorosa. Por que sendo elas me contando, e eu admirando tanto elas, e não vendo nenhuma menos valia nelas, eu entendi que essa solidão não era pessoal, não era abandono, mas sim condição da vida adulta.
Que é uma merda, por que eticamente no fundo do meu coração sempre acho que a gente tem que estar aí para os outros. Mas nem sempre estamos, nem sempre podemos, as vezes a gente nem sabe que o outro precisa, outras tantas vezes a vida desenhou outra história. E aí começo a ver a história por outros angulos. Ao ouvir das minhas amigas isso, de ver quando eu mesma não estive aí, e por que, e nunca é por babaquice, e sim por que a vida de todo mundo está aí acontecendo ao mesmo tempo, e as vezes é dificil a gente entender isso. Eu sei que eu acho pelo menos, dificil de entender essas todas vidas acontecendo ao mesmo tempo, com seus dramas, suas questões, suas escolhas. A Sil tem me ensinado que é com nós mesmos que  a gente tem que contar na hora H. Eu ainda não consegui aprender isso direito. Eu estou tentando, mas existe uma vontade do junto muito grande dentro de mim. Mas acho que tudo bem, no sentido que o junto é uma possibilidade boa, mas não se você depende disso. A meta é se idependizar do junto, inclusive para poder viver isso de boa. Não precisar de mulheres, nem amigos, nem familia, mas poder viver tudo isso.

solidão

não há pressa em dormir
por que entre as costelas um vácuo imenso se forma.
por que racionalmente eu sei que nascemos e morremos sozinhos (sozinhas).
e sem dinheiro. e sem roupas. e sem direitos autorais.
eu sei.
mas são em madrugadas assim que eu Sei.
e saber tem a altura de penhasco, e arrebenta, e mói,
e é só bem lá no fundo que pode ter uma calmaria,
mas só se você trabalhar isso muito bem.

fatos. você pode querer tocar nos fatos para entender.
não há.
não é natal, nem data nenhuma,
é só mais uma sexta feira e minhas costelas doem.

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2017

Eram quatro horas da tarde de uma terça feira. Na rua Duartina, centro da cidade, uma mulher grita "Meu filho foi preso!". Chora, ri. Parece soluçar entre um emaranhado de emoções. Os transeuntes e pais a olham curiosos. Não chegam a compreender se é alegria, tristeza, comoção ou desespero. Seu último grito antes de entrar no ônibus esclarece todas dúvidas: "Graças a deus!".

Se você me perguntasse o que ela tinha, eu diria - sede. A maneira como seus olhos brilhavam cheio de secura, os seus pés se moviam ásperos, arrastando areias hipotéticas. Enquanto a observava entre as pessoas daquela sala branca, parecia ser a única a não ter nenhum tipo de contentamento.

Explico melhor. Estávamos na defensoria. Terça feira, dia de atendimentos aos pais de menores infratores. Cirley espera sua vez, não pacientemente como os outros pais, mas como se essa sede a comesse por dentro. A defensora já alcança o quinto atendimento do dia e ainda faltam diversas tragédias, de tamanhos diversos, para ela que possa ser atendida.
Aguarda o resultado do julgamento do seu filho, acusado de roubar uma moto. A defensora chama na quietude da sala - Israel.. ! Família do Israel Gomes. Israel é um nome forte para se dar a um filho. Penso da onde veio a inspiração. Cirley se dirige a saletinha de atendimento. A defensora discorre pacientemente sobre o processo de seu filho. Explica em minúcia os detalhes da lei, o que funciona na teoria, como será na prática. Cirley a olha com calma. Uma calma surpreendente. A defensora prossegue, ligeiramente sem graça com a postura estranha da mulher.




sábado, 10 de maio de 2014

Olhos

Olhos nos olhos
E um campo magnético
Profuso e confuso
A separar
E
Unir nossos corpos
Num êxtase
De migalhas e manhãs.

quinta-feira, 10 de outubro de 2013

tango n. 7

A calma de casa o acalentava. O modo com os móveis se revestiam de silêncio. O copo em cima da mesa. Não sairia dali até que o tirasse. A poeira se acumulando, primeiro nas quinas, depois nos discos, nos livros, na mesa. Dominando a todos lentamente, como apenas uma mulher faria, denunciando o tempo, a morosidade do tempo, a letalidade do tempo.
Pensava banalidades como essa, olhando para a marca escura da poeira no seu indicador, quando sentiu o primeiro vestígio da saudades.
Esse estágio se assemelha ao gim. Cheiro de perfume, promessa, azia. Se você estiver atento pode até ouvir o chacoalhar discreto do gelo batendo no copo.
Lembrou dela e logo em seguida se deu conta de que não ligava. De que não era dela que sentia falta. Aquele última ela, com seus gritos, suas burrices, sua traduções equivocadas de tudo o que ocorria. Dela não. Sentia falta da segunda pessoa da conjugação.
Tu.
Era de tu que Elias sentia falta. Estava farto do eu. O eu e seus problemas, ordenados por grau, gênero e parentesco. Os grandes problemas, os traumas, ver seus pais trepando sem amor, e se lembrar, descobrir aos 32 anos que seu nariz é torto, que você Elias, não sabia até os 32 anos que era um homem de nariz torto. Os pequenos problemas, o café, que como um ditador anão demanda sete minutos do seu tempo, e as vezes fica forte demais, ou fraco demais, e se você se distrai com qualquer coisa, outros sete minutos de qualquer alegria como um pássaro pequeno, uma alegria pequena, que pousa no beiral da janela, e você se deixa levar por suas penas, pelo seu toque delicado no azulejo, e de repente o café está frio e a vida está um pouco pior.
Também não suportava mais os elas e eles. Os eles e elas da rua. Os eles e elas do trabalho. Os elas e eles do restaurante, da rua, do supermercado. Eles, com suas camisas passadas. Quem passará suas camisas? Ou eles mesmos passam? Ou tem alguém que os ama com o amor devoto das camisas passadas, ou eles mesmo se amam tanto a ponto de terem esse exímio grau de concentração, determinação e limpeza. Elas. Com seus cheiros. Seus cabelos furta cor. Por que todas as mulheres da rua passam com seus cabelos chapados? Seus cabelos anestesiados, sem pregas, sem as marcas rudimentares de uma vida qualquer vivida com prazer e dor.

Entre outras pessoas verbais mais estranhas ainda ele anseava pelo tu. O procurando naquele tarde de sol esquecido entre os discos de Marília Medalha, tango e Caymmi. Anseou, com o menino que vivia dentro de si, ter um tu para cantar sombreando entre a nuca "tu me acostumbrastes".

A poeira o entregara a um tempo de bocejo e solidão. O telefone guinchando o retirava.
Era Joana. Chamou para o show do amigo da amiga dela. Ele ia. Sabia que ia. Algo nele já sabia o que dizer,  o que fazer, e dizia. Combinava com ela o horário, o lugar. Algo nele previa, e imaginava detalhes práticos. Ele ouvia sua própria voz falar, sentia o fluxo constante e pequeno das tomadas de providência. Embora não se reconhecesse nelas. A voz continuava eletrica no telefone, até se transformar em silêncio. Na sala quase vazia ele não reconhecia, enquanto olhava atentamente a marca de poeira no seu indicador. 

quinta-feira, 26 de abril de 2012

Casa 8


reza a lenda. nada reza. se rezasse aqui nessa casa não entrava. esse relicário aí na entrada é só pra afastar o santo, que tem medo de imagem. essa luz amarela só ilumina o vazio da queda. quantos homens e quantas mulheres ajoelhados nesse chão que você pisa não quedaram. se você conseguisse enxergar na escuridão dessa luz amarela ia ver as marcas: vômito, náusea, sangue, gozo, pus. você ia ver e algo dentro dessa sua escuridão de luz amarela ia se pungir. de nojo ou tesão. ou os dois juntos. você com esses seus olhos de menina. olhos de mulher dentro dos olhos de menina dentro dos olhos de menino dentro dos olhos de ancião dentro dos olhos de menina. você não me engana. eu conheço o seu nojo e o seu tesão. sei de cor o seu pior. já vi na pele branquinha de tantas meninas como você. caídas nesse chão. não pedindo por mais nada. não pedindo por perdão. não pedindo por água. talvez por um pau. ou um dedo. uma língua. um corte rente no macio das pernas. eu vi homens velhos também. que vieram aprumados. desgostosos e descrentes. eles também caíram. e perderam o medo da minha cara alaranjada e eufórica. cara de cavalo da madrugada. eles todos sentiram o gosto acre dessa bebida. sentiram a dor e o prazer dessas mordidas de bicho da terra. se sentiram tão perto da morte, e do prazer lento e moroso e escuro da morte, se sentiram tão perto da cor da vida, marrom fezes, casca de ferida, coagulo, coisa vencida, que nunca voltaram. eu nunca mais chamei eles. eles abraçaram a própria escuridão e sairam lívidos e leves. eu vi nos seus olhos o fundo do desejo. eu ouvi a voz firme do avesso do amor. eu senti com meus pés quando você entrou o rumor da terra ordenando a sua presença. foi por isso que eu te chamei.

Casa 6



   Libidinoso, tocava as bordas das máquinas, se escondia das persianas para roçar seus braços gordos e suados por sobre a prensa, entre o scanner, atrás da porta.
   “Você reclama, mas quando eu me for, vai virar um bebum”. Disse ela num dia que parecia mais leve, quiçá, talvez, até alegre. Seria óbvio que ele bebesse. Entre os papéis amarelados, nos grandes espaços, em tudo que denunciava sua solidão sórdida.
   Talvez ele não bebesse para não dar a ela essa alegria. Embora todos soubessem que ela nunca mais se afetaria por nada que concernisse esse universo balofo, essa emoção cheia de sebo. Quando ela começou a trabalhar lá foi quase uma brincadeira, todos sempre achavam que ela não precisava do dinheiro, preferia, ao invés, poder inverter esse pobre homem. Virá-lo de ponta cabeça e deixar vazar dos seus bolsos todo dinheiro – até o mais ínfimo trocado, e também os documentos, e ainda por cima os clips, e se sobrassem os palitos de dente, guardanapos e propagandas enganosas.
   Ela me lembra as mulheres que os homens que ainda se aventuram na umidade chamam de demônios. Ora, nem tão ao norte, nem tão ao sul. Ela chegando com suas pastas e seu cabelo preso em coque. Ela chegando com sua saia quase curta quase longa. Se via o nervosismo no modo como ela abria a porta, como na primeira vez tentou se anunciar ao vento, e como algo pudico e puro se cingiu ao ver aquela nódoa imensa se apresentando “Carlos, pode ir entrando, é por aqui”.
   Ele apresentava os cômodos, as prateleiras e os incômodos – dela, é claro. Tudo que via era um emaranhado de sujeira e tristeza. O excesso de pó ali recendia a solidão amontoada.
   Pensando bem, talvez ela simplesmente quisesse fazer bem para ele, consertar essa máquina obsoleta, essa máquina de escrever da década de 10.
   Agora, tentando tirar o pó infindável de cima dos arquivos, ele roça os dedos gorduchos em pardo e relembra. Não, ela não era maldosa. Talvez fosse pura. Quase tão pura quanto ele.
   Aos poucos  ela foi fazendo suas vontades. Trazia cafés e torresmos quando voltava do almoço. Limpava sua sala apenas quando ele estava ali, para não invadir o seu senso de privacidade, e então conversavam sobre Gardel, que talvez fosse o único interesse em comum dos dois. 
   Acho que ele começou a fazer bem para a solidão dela, de menina com família longe. E ela, é claro, começou a povoar os pântanos daquele homem.
   Ela voltava para casa, tomava um banho forte – para limpar aquele lugar da pele dela, cozinhava sua porção para um, e ia dormir pensando na sua missão, de tornar aquela coisa mais humana, mais feminina. Talvez ela tenha se sentido na obrigação, que toda mulher sente uma hora ou outra, de cuidar de um homem totalmente órfão de cuidados.
   Ele voltava para a quitinete dele, e desmanchava no sofá. Se era dia de pizza nova tomava banho, se comeria os restos do dia anterior não precisava. Via tv, vivia sonhos vazios, sonhos ausentes, e se recriminava quando pensava nas coxas dela.
   Se alguém disser assertivamente que ela é uma mulher má, eu diria que aquela época não se percebia. Porém, também diria, que toda mulher se sente na obrigação, uma hora ou outra, de ser má.

quinta-feira, 18 de agosto de 2011

mil bocas

não sei por que minha mão se fecha abrutalhada no seu pescoço alvo. talvez seja o meu senso de proteção. que quer te dar um lar. quer te amamentar com cachaça e pão de ló. o meu seio sentido, o meu sexto imenso senso, agora seus. não sei se é a morte que te quero enfeitiçar. talvez eu simplesmente a queira, como um dia quis no berço a morte. talvez eu queira te conter, como se contêm o mar. mergulhar, adensar, sufocar, e sair encharcada e sem posses. talvez eu queira te ferver, te ver água partindo lúcida manhã por cima das montanhas longe longe. talvez eu simplesmente queira te amar. mas então não entendo minhas mãos correndo em perigo, nos errados lugares dos lugares antigos. navalhas, socos, unhas levantadas, violências de contenção. eu devia te amar sem mãos, só mil bocas, umidades escusas, cheiros e curvas. as armas não letais que ser mulher me deu.

sexta-feira, 5 de agosto de 2011

Rua dos Desiludidos N°2

Hoje eu decidi te contar tudo da minha vida. Joguei a sua última carta mal escrita no lixo. Juntei os meus bons restos com meus melhores começos. Aqui nesse envelope, meu bem, te mando. O eu que você perdeu.

Primeiro sinal desse novo eu – o cinzeiro cheio de cigarros. Sim, meu bem, voltei a fumar. Somei os dois mais dois e vi que sua neurose pneumática anestesiou um dos meus maiores prazeres. Às vezes tusso, suo, seco e muito, e sinto meu dente amarelo. Mas não importa meu bem, pelo menos agora eu tenho um sorriso para mostrar os dentes.

Falando em dentes amarelos, ando tomando mais café que funcionário público. É que para me agüentar em pé na academia de noitão depois do serviço, só tomando muito café. A Alzira do 23 já me falou que assim vou ficar com tremedeira, que essa magreza encostada nos ossos não faz bem para ninguém, e que minha palidez contrasta feio com os dentes. Mas não me importa meu bem, quero crescer em carne e força, para me distanciar cada vez mais de você. A Alzira deve estar é com vontade de mim. Qualquer dia desses quando a fome me afrouxar o cinto vou lá bater na porta do 23.

Lá no emprego as coisas estão boas. O patrão sempre me cumprimenta com um olhar esperto no rosto. Penso que ele sabe que somos do mesmo clube, de homens selecionados e bons, sempre andando nas melhores montanhas. Se deus for bonzinho é nesse ano que sai aquela promoção. Tenho certeza que sairá, é o que tudo indica, meu bem.

Fora isso tá tudo muito bem. Eu ando na maior felicidade. Quem me olha subindo as escadas do prédio (o elevador enguiçou de vez agora) pensa que eu sou o homem mais sortudo do mundo, é um sorriso daqui ali ó. Mesmo que amarelo.

Acho que é isso meu bem. Nessa carta aqui só queria dizer isso. Não te amo nem um pouco, minha vida é um estouro, estou muito bem, muito feliz. Todo dia meu bem, um sorriso daqui ali ó.

domingo, 3 de julho de 2011

Belvedere

Engolir saliva quente, em Belvedere. Limpar o suor do buço, em Belvedere. Ignorar os mosquitos, em Belvedere. Ignorar o silêncio, em Belvedere. Ignorar Belvedere.

Esmurrou a mesa mais uma vez tentando esmagar um mosquito. Antes os qualificava por classe e cor: os miúdos, os peixes-grandes, os chicanos, os pretos. Agora os nomeia. Cravou o mosquito entre o dedo indicador e o polegar e disse para ninguém ouvir: Ismael. Se alguém o chama, será Ismael.

Às vezes pensava que poderia esmurrar quantos mosquitos quisesse. Ou pior, nomeá-los. Naquela sala, cujos atributos eram estrangeiros e passageiros. A sala amarela de quentura. A sala pingando de suor. A sala solidão enlouquecedora. A sala dando nomes aos mosquitos. Às vezes pensava se de fato aquelas coisas todas aconteciam, uma vez que ninguém as testemunhava.

Sua relação rudimentar com o mundo consistia em analisar pontos brancos num papel fotossensível em escala de cinza. Anotar a graduação em cada margem, circular os prováveis pontos de convergência, ficcionalizar a terra, e o pasto.

Todas as manhãs recebia por um buraco da porta o café e as fotos. Todo desjejum, três pontos brancos à direita e um café seco. Às tardes, três pontos brancos à direita e um emaranhado comestível. Às noites sopa, um café, e três pontos brancos à direita.

Devolvia os talheres e pratos pelo buraco da porta, e colocava os mosquitos organizados por ordem alfabética no canto da sala. Arthur – porque era um rei. Bruno – um nome digno para um preto. Cassiana – um gladiador fêmea.

Então voltava a limpar o suor do buço, afastar o silêncio dos ouvidos, chamar os mosquitos, engolir café seco.

Deitava-se no beliche, embora nunca houvesse ninguém para dividi-lo com ele, e as estrelas o tingiam de som. Lembrava-se de quando era um príncipe na Sarcóvia e imaginava se alguém ali saberia. Então ria, desanuviado, pois com a mesma calma com que nomeava mosquitos, sabia que não precisavam saber que ele era um rei, para que fosse. Lembrou-se dos rituais de caça ao bode. Dos colares de coral, e anéis de concha. Lembrou-se infinito dos prazeres da selva, e do caldo grosso e bem quente servido em volta de caça. Lembrou-se de sua noiva, os cabelos trançando alegria suave, o perfume distraído da alfazema.

Quando acordava embebido na secura úmida do mediterrâneo de suas férias, abria os olhos esperando a delicadeza do alecrim vencer-vênus a carne tenra do carneiro. Depois que os pedaços graúdos eram servidos, ele e alguns outros se sentavam na relva, esperando os mosquitos retardatários povoarem os restos de comida. O zumbido contínuo de suas asas rimava com a saciedade e o calor modorrento. Gostava de sentir o gosto contínuo da carne bruta, a coceira da grama sobre a pele, os primeiros insetos chegando – um barulho distante chacoalhando entre as ondas, se misturando entre os sons da areia e do vento, tornando-se lento, aproximando-se como uma massa, um zumbido inteiro como uma montanha, de insetos anônimos, de mosquitos, mosquitos desordenados, mosquitos do tempo em que mosquitos não tinham nome.

Belvedere. O gosto agridoce da palavra combinava com o lugar. Belvedere. Todos os dias pontos brancos à direita em Belvedere. Engolir saliva quente, em Belvedere. Limpar o suor do buço, em Belvedere. Ignorar os mosquitos, em Belvedere. Ignorar o silêncio, em Belvedere. Ignorar Belvedere.

terça-feira, 7 de junho de 2011

Sorriso fino

Aguardou pacientemente. As folhas da samambaia deslizavam quase até o chão. A luz tocava veludo em cada coisa daquela enorme sala. Sua xícara de café esperava negras marcas sob a toalha de feltro. A noite, essa mulher corpulenta, o vigiava da janela. Tudo o que ele fazia, tudo o que ele podia fazer, era esperar.
Talvez esperar as cadeiras se arrastando no chão. Talvez esperar que o cálice de qualquer coisa forte finalmente fizesse efeito. Esperar o dia? Talvez. Esperar calmamente, sem nenhum resquício da pressa que o outro teve ao sair.
Agora que o tempo escorria por seus dedos com a mesma aspereza da areia, percebera que tinha perdido a conta. Era possível que tudo tivesse acontecido ontem: e então todas essas coisas o fitando, sem sentido, sem nome, fúteis coisas. Mas olhava para a foto amaecendo na janela, e pensava que deveria fazer mais tempo. Era possível que fizesse um ano, era possível que tudo tivesse acontecido há décadas. E os dois rindo um para o outro, sem nem saber por que, amarelando na janela da sala.
A sala era grande demais, do tamanho de um mundo. Ele se movia como se dela fizesse parte. Suas coxas, lentas como a água (era a chuva, que nunca mais parou de cair). Seus olhos cegos, adivinhando o lugar de cada coisa. As mãos, ainda desajeitadas, mesmo depois de tanto tempo.
Ele, que certa feita se chamara Rafael, de todas as vastas coisas que fazia, agora faz quase nada. Agora, se alimenta exclusivamente de tomates, amoras e mangas, plantadas antes de tudo. E quando come tomates gosta de mordê-los com voracidade, como um cão atormentado pela raiva. Amoras, gosta de deixar escorrer seu sangue, pelas mãos, pela boca, pelo pescoço, pelo corpo inteiro até chegar no chão (dias de vampiro, ou lobisomem). Nos dias de manga, gosta de romper a pele delicadamente, separando a carne densa do caroço. Como um cirurgião, cheio de minúcias, sem nunca temer desfazer-se dos aspectos desnecessários do corpo.
Esses personagens o distraiam da forma escura e arredondada que se tornou depois do fato. Nesses efêmeros momentos podia fingir ter nome, idade, gosto, textura. Podia fingir ter dentes para morder, e que eles ficavam dentro da sua boca. Podia fingir que os braços caiam ao longo do tronco, saídos do ombro em direção ao chão. Podia tentar enganar-se que de fato sua cabeça ficava exatamente oposta aos pés. Quando se deixava surpreender pelo próprio corpo era quase como se risse novamente, brincadeiras tais como dedos navegadores descobrindo as pintas do outro. Mas então, se por acaso relembrava histórias assim, voltava rapidamente a sua desforma - todos os órgãos flutuando pela casa.
Tinha também a hora da noite virar dia. Quarenta e dois minutos que de tão bonitos, o devolviam temporário a ele. Foi num desses momentos que sorrateiramente entendeu o começo do fato. Pensara no outro, todos os detalhes, as pequenas delícias e as grandes dores. Começara no fim: era como um filme rebobinando. Via o outro através da janela, no mais longe do visível, voltando aos pouquinhos de marcha ré. O viu entrando com um rosto sem nenhum amor. Ouviu o grito longo e profundo, como um lobo procurando a morte. Viu ele sentado com as mãos na cabeça, silencioso por dias. Viu a última briga. Viu todas as brigas até a primeira. Viu o amor demorado das pazes feitas. Também viu o amor violento, suas costas sangrando, seu rosto ardendo de gozo, como um lobo devorando sua presa. Viu histórias sendo lidas em voz alta. Ouviu canções de tanto tempo que deixaram seus olhos um pouco úmidos, como um lobo velho. Viu a primeira vez que ele ali entrara. Viu ele em outra sala, se afastando gradual de um beijo. Viu, e então tudo entendeu, o começo do começo de tudo, a culpa de todo o fato, a ternura muito mais violenta que o adeus. Enquanto o outro se afastava, cada vez mais longe, viu ele no meio da outra sala: o rosto sério aos poucos se desfazendo, desenhando aos poucos, bem lento, as bordas dos lábios, a mandíbula dançando, a pele esticando ali, relaxando ali, viu no desenho de um momento o culpado de tudo, criminoso, no meio da cara, o tal do seu sorriso fino.
Rafael se pôs de pé e uivou para o nascer do dia. Deu espaço para o sol subir e então ficou silencioso, como um lobo sábio.

segunda-feira, 9 de maio de 2011

Sérgio

Não era a imagem que o interessava. Absolutamente. Sentado inerte em sua poltrona, ele não se interessava pelo melodrama das notícias. Não acreditava na perspectiva americana da história dos maias. Não tinha empatia pela reviravolta pessoal de rappers, pela tragédia de meninos bruxos, por histórias de amor com pontos de virada pré-programados. Apertar os botões constantemente, um após o outro, o acalmava.

Cansou sua neurose com os dedos, ou o contrário, e desligou o aparelho. O som banal de um fora que teimava em se repetir invadia sua intimidade.

Ouviu a massa sonora do elevador se aproximando. Ouviu o decorrente silêncio. Previu a maçaneta se abrindo. Antecipou o rosto que não mais conhecia.

Ela entrou esbaforida enchendo a mesa da cozinha de sacos plásticos. Seus músculos não descansavam, ela parecia correr contra o tempo como se dele dependesse alguma coisa. Não conseguia entender que a dor dele não tinha hora. Deixou cair uma lata, não olhou nos seus olhos. Guardou as vagens na gaveta errada, sequer olhou para a geladeira.

Tudo era feito por ela dessa forma. Se ela falava com ele pensava na conta de luz; se via t.v., pensava no email a escrever; na terapia falava constantemente de sua mãe que morrera há anos. Ela estava longe da vida, programada por um relógio interno japonês. Se olhava para ele deveria ser seis horas. Se o beijasse é porque era dez, e era preciso ninar as hipocrisias para que todos dormissem bem.

Ele, por outro lado, tinha a infeliz fortuna de ter a conexão mais profunda com todas as coisas – a dor. Ele quase nunca sabia se eram cinco, três ou doze horas. As coisas desfilavam por seus olhos sem o véu perverso do afeto. Ele tinha a consciência exata delas: liquidificador, mulher, Ford, gim. Nos últimos tempos principalmente gim. Rarefeitas vezes mulher.

Ela entrou no chuveiro sem quase falar com ele, e ele sabia, intimamente, que ela não queria misturar-se com essa lama pútrida.

Não sei quando pude imaginar que ela poderia ter algo a ver comigo, sem que eu lhe parecesse como um quadro torto na parede, ansiando sempre pela correção.

Como pude imaginar que seria feliz casando com uma mulher feliz? Obviamente nossos caminhos se desencontrariam nas suas risadas fáceis, na minha solidão. Eu não era um cavalo de corrida que se pudesse avaliar os dentes. Se me punham em corridas eu ficava nervoso e andava de ré. Não sei porque ela gosta de mim, talvez por que goste de Bukowsky, ou secretamente anseie por um cheiro denso, com notas aguardentes. Eu gosto dela para não ter que gostar de mim.

Ela saiu do chuveiro sem falar comigo. Fez um chá de cidreira e quase queimou as mãos. Sentou ao meu lado. Eu não a queria tão perto, quase gritei. Ela fez olhos grandes, redondos. Era tão pura olhando assim para mim. Tive certeza que ela sabia. E a odiei. Era evidente que com seus cabelos loiros e sua postura correta teria compaixão por mim. Talvez me perdoasse. Talvez me amasse mais, por eu ser ainda mais torto do que previam seus planos. Ela tocou minhas mãos. Olhou para mim. Queria conversar. Quase gritei como um animal ferido para que ela fugisse enquanto era tempo, que sim, eu era sujo, baixo. Eu era um ser da terra que nunca alcançaria as coisas do céu. Eu era capaz de fazer isso com uma mulher. Se ela precisava de mais uma razão para perdoar, eu daria. Se ela queria, a cada perdão, se tornar ainda mais perfeita – santa Tereza de Calcutá nutrindo os incorrigíveis, os baixos, os fracos - eu daria as condições necessárias.

Ela se aproximou um pouco mais. Ela sabia. Ela me usaria. Ela ia me perdoar. Ela ia fomentar esse ódio sem tamanho. Ela disse, e eu fiquei sem ar “Sérgio, a gente precisa conversar.”.

O tom que ela usara me surpreendeu. Tinha o gosto das últimas palavras. A observei, numa última tentativa de compreensão. E dentro dos seus olhos, úmidos, esquivos, vi um homem. Num caminho sem volta percorri suas linhas, seus braços fortes, sua tez morena, o possível início precoce de uma calvice. Embora em nada me identificasse com esse homem, havia algo de familiar. Talvez o tenha visto na rua, no trânsito, no cinema, na padaria. Talvez.

Eu e ele éramos como dois antagonistas em um duelo de lanças. Ele era seguro, não tremia nenhum músculo, sorria para mim, como se compreendesse algo que me escapava. Enquanto eu pensava em mostrar os dentes, ele sorria, como se estivesse morto, como se tivesse alguma espécie de paz.

Voltei abruptamente ao meu próprio corpo, e senti, convulso, que chorava. Lágrimas com gosto de naftalina. Meus músculos duros chocoalhando dores antigas. Olhei para Clara, para minha esposa, para aquela mulher. Ela olhou para mim. Éramos dois, sentados um ao lado do outro, sem nome para ter, idade para usar. Éramos dois, ali, sentados, olhando um para o outro talvez pela primeira vez.

Ela sem nome

Ela sem nome, sem cor. Ela sem gênero. Ela sem sexo. Ela sem espaço e sem tempo. Ela sem dor, sem sentir e sem pensar. Ela na varanda subitamente voltando, algo se rompendo como um graveto seco ao som súbito e preciso de um nome: Carol.

Linda se debruçou na varanda e insistiu num tom mais alto: Carol.

Carol olhou em sua direção, desatenta. Olhou as madeiras podres sob seus pés e lembrou de insistir com Jerry mais uma vez para que ele as trocasse.

- Os meninos estão com fome. Olhei na geladeira e só tem ovos e leite, acho que dá pra fazer panquecas. – Linda olhou assertivamente para sua amiga, como se ao resolver a questão da nutrição infantil resolvesse o desgosto que sentia quando, por exemplo, se deparava com a infelicidade escancarada de alguém na rua, se infiltrando em sua pacífica vida como uma nódoa no meio da toalha da mesa de jantar.

O rosto de Carol manteve-se impassível, como se a palavra panqueca fosse como qualquer outra, zunir, cantar, Uganda, asfalto. – Panquecas está ótimo.

Seriam panquecas, e as crianças ficariam felizes. Ao mesmo tempo em que a despensa alheia não sofreria graves perdas. Linda imperceptivelmente sorriu do seu triunfo. As panquecas eram, a um só tempo, adequadas à diplomacia comunitária e ao dever materno.

Porém, Carol não parecia dividir o mesmo semblante de neurose acalentada. Havia algo grave em seus olhos, e no modo como o braço esquerdo segurava o direito entre os peitos. Ela discretamente pensava coisas distantes de crianças, ovos, leites, Lindas, panquecas. Na verdade o que ela pensava estava longe de ser, concretamente, um pensamento. Era algo muito maior. Muito mais branco. Enquanto Linda expelia simples verdades com olhos elétricos e mudos, ela sentia. Primeiro em partes, sutilmente, com os pelos, talvez o nariz. E então aos poucos com o corpo todo, até que algo sólido cinza fluído invadisse tudo o que restasse de sua calma e a deixasse, não com os olhos de uma mulher infeliz, ou frágil, ou frustrada, mas sim como uma mulher distante. Em luto presente numa vida que não parecia lhe pertencer.

Frente ao desconfortável silêncio que sufocava a varanda, Linda voltou à cozinha. Carol ouviu o barulho dos eletrodomésticos como se fossem uma canção longínqua, proveniente de quando, em outras vidas, habitara povos desconhecidos. Ela deixou o som metálico ressoar contra as paredes e contra seus ouvidos, embora já não esperasse mais nada.

Como se ela mesma fosse o prolongamento dessas antigas melodias ela começou a andar, deixando marcas na rua de terra. O ritmo de seus passos pareciam adequados. O som dos pés contra a terra recontando uma mesma história tantas vezes vivida. O cheiro do eucalipto no caminho não a lembrou de tantos anos vividos sob o mesmo teto de copa de árvores, mas prometeu novas curvas e acontecimentos. Era somente assim. Sob o peso agridoce do silêncio; sob a doce cumplicidade do que chamam de loucura; sob o plágio da indecência da primeira mulher; sob o ventre inchado de algum tipo de futuro; que Carol partiu.

Em tardes mansas de agosto, enquanto a terra desbota na luz do fim do dia, às vezes podemos ouvir seus passos. Duros, certeiros. Doces. Como um dia foram os passos de todas as mulheres.