segunda-feira, 9 de maio de 2011

Sérgio

Não era a imagem que o interessava. Absolutamente. Sentado inerte em sua poltrona, ele não se interessava pelo melodrama das notícias. Não acreditava na perspectiva americana da história dos maias. Não tinha empatia pela reviravolta pessoal de rappers, pela tragédia de meninos bruxos, por histórias de amor com pontos de virada pré-programados. Apertar os botões constantemente, um após o outro, o acalmava.

Cansou sua neurose com os dedos, ou o contrário, e desligou o aparelho. O som banal de um fora que teimava em se repetir invadia sua intimidade.

Ouviu a massa sonora do elevador se aproximando. Ouviu o decorrente silêncio. Previu a maçaneta se abrindo. Antecipou o rosto que não mais conhecia.

Ela entrou esbaforida enchendo a mesa da cozinha de sacos plásticos. Seus músculos não descansavam, ela parecia correr contra o tempo como se dele dependesse alguma coisa. Não conseguia entender que a dor dele não tinha hora. Deixou cair uma lata, não olhou nos seus olhos. Guardou as vagens na gaveta errada, sequer olhou para a geladeira.

Tudo era feito por ela dessa forma. Se ela falava com ele pensava na conta de luz; se via t.v., pensava no email a escrever; na terapia falava constantemente de sua mãe que morrera há anos. Ela estava longe da vida, programada por um relógio interno japonês. Se olhava para ele deveria ser seis horas. Se o beijasse é porque era dez, e era preciso ninar as hipocrisias para que todos dormissem bem.

Ele, por outro lado, tinha a infeliz fortuna de ter a conexão mais profunda com todas as coisas – a dor. Ele quase nunca sabia se eram cinco, três ou doze horas. As coisas desfilavam por seus olhos sem o véu perverso do afeto. Ele tinha a consciência exata delas: liquidificador, mulher, Ford, gim. Nos últimos tempos principalmente gim. Rarefeitas vezes mulher.

Ela entrou no chuveiro sem quase falar com ele, e ele sabia, intimamente, que ela não queria misturar-se com essa lama pútrida.

Não sei quando pude imaginar que ela poderia ter algo a ver comigo, sem que eu lhe parecesse como um quadro torto na parede, ansiando sempre pela correção.

Como pude imaginar que seria feliz casando com uma mulher feliz? Obviamente nossos caminhos se desencontrariam nas suas risadas fáceis, na minha solidão. Eu não era um cavalo de corrida que se pudesse avaliar os dentes. Se me punham em corridas eu ficava nervoso e andava de ré. Não sei porque ela gosta de mim, talvez por que goste de Bukowsky, ou secretamente anseie por um cheiro denso, com notas aguardentes. Eu gosto dela para não ter que gostar de mim.

Ela saiu do chuveiro sem falar comigo. Fez um chá de cidreira e quase queimou as mãos. Sentou ao meu lado. Eu não a queria tão perto, quase gritei. Ela fez olhos grandes, redondos. Era tão pura olhando assim para mim. Tive certeza que ela sabia. E a odiei. Era evidente que com seus cabelos loiros e sua postura correta teria compaixão por mim. Talvez me perdoasse. Talvez me amasse mais, por eu ser ainda mais torto do que previam seus planos. Ela tocou minhas mãos. Olhou para mim. Queria conversar. Quase gritei como um animal ferido para que ela fugisse enquanto era tempo, que sim, eu era sujo, baixo. Eu era um ser da terra que nunca alcançaria as coisas do céu. Eu era capaz de fazer isso com uma mulher. Se ela precisava de mais uma razão para perdoar, eu daria. Se ela queria, a cada perdão, se tornar ainda mais perfeita – santa Tereza de Calcutá nutrindo os incorrigíveis, os baixos, os fracos - eu daria as condições necessárias.

Ela se aproximou um pouco mais. Ela sabia. Ela me usaria. Ela ia me perdoar. Ela ia fomentar esse ódio sem tamanho. Ela disse, e eu fiquei sem ar “Sérgio, a gente precisa conversar.”.

O tom que ela usara me surpreendeu. Tinha o gosto das últimas palavras. A observei, numa última tentativa de compreensão. E dentro dos seus olhos, úmidos, esquivos, vi um homem. Num caminho sem volta percorri suas linhas, seus braços fortes, sua tez morena, o possível início precoce de uma calvice. Embora em nada me identificasse com esse homem, havia algo de familiar. Talvez o tenha visto na rua, no trânsito, no cinema, na padaria. Talvez.

Eu e ele éramos como dois antagonistas em um duelo de lanças. Ele era seguro, não tremia nenhum músculo, sorria para mim, como se compreendesse algo que me escapava. Enquanto eu pensava em mostrar os dentes, ele sorria, como se estivesse morto, como se tivesse alguma espécie de paz.

Voltei abruptamente ao meu próprio corpo, e senti, convulso, que chorava. Lágrimas com gosto de naftalina. Meus músculos duros chocoalhando dores antigas. Olhei para Clara, para minha esposa, para aquela mulher. Ela olhou para mim. Éramos dois, sentados um ao lado do outro, sem nome para ter, idade para usar. Éramos dois, ali, sentados, olhando um para o outro talvez pela primeira vez.

Ela sem nome

Ela sem nome, sem cor. Ela sem gênero. Ela sem sexo. Ela sem espaço e sem tempo. Ela sem dor, sem sentir e sem pensar. Ela na varanda subitamente voltando, algo se rompendo como um graveto seco ao som súbito e preciso de um nome: Carol.

Linda se debruçou na varanda e insistiu num tom mais alto: Carol.

Carol olhou em sua direção, desatenta. Olhou as madeiras podres sob seus pés e lembrou de insistir com Jerry mais uma vez para que ele as trocasse.

- Os meninos estão com fome. Olhei na geladeira e só tem ovos e leite, acho que dá pra fazer panquecas. – Linda olhou assertivamente para sua amiga, como se ao resolver a questão da nutrição infantil resolvesse o desgosto que sentia quando, por exemplo, se deparava com a infelicidade escancarada de alguém na rua, se infiltrando em sua pacífica vida como uma nódoa no meio da toalha da mesa de jantar.

O rosto de Carol manteve-se impassível, como se a palavra panqueca fosse como qualquer outra, zunir, cantar, Uganda, asfalto. – Panquecas está ótimo.

Seriam panquecas, e as crianças ficariam felizes. Ao mesmo tempo em que a despensa alheia não sofreria graves perdas. Linda imperceptivelmente sorriu do seu triunfo. As panquecas eram, a um só tempo, adequadas à diplomacia comunitária e ao dever materno.

Porém, Carol não parecia dividir o mesmo semblante de neurose acalentada. Havia algo grave em seus olhos, e no modo como o braço esquerdo segurava o direito entre os peitos. Ela discretamente pensava coisas distantes de crianças, ovos, leites, Lindas, panquecas. Na verdade o que ela pensava estava longe de ser, concretamente, um pensamento. Era algo muito maior. Muito mais branco. Enquanto Linda expelia simples verdades com olhos elétricos e mudos, ela sentia. Primeiro em partes, sutilmente, com os pelos, talvez o nariz. E então aos poucos com o corpo todo, até que algo sólido cinza fluído invadisse tudo o que restasse de sua calma e a deixasse, não com os olhos de uma mulher infeliz, ou frágil, ou frustrada, mas sim como uma mulher distante. Em luto presente numa vida que não parecia lhe pertencer.

Frente ao desconfortável silêncio que sufocava a varanda, Linda voltou à cozinha. Carol ouviu o barulho dos eletrodomésticos como se fossem uma canção longínqua, proveniente de quando, em outras vidas, habitara povos desconhecidos. Ela deixou o som metálico ressoar contra as paredes e contra seus ouvidos, embora já não esperasse mais nada.

Como se ela mesma fosse o prolongamento dessas antigas melodias ela começou a andar, deixando marcas na rua de terra. O ritmo de seus passos pareciam adequados. O som dos pés contra a terra recontando uma mesma história tantas vezes vivida. O cheiro do eucalipto no caminho não a lembrou de tantos anos vividos sob o mesmo teto de copa de árvores, mas prometeu novas curvas e acontecimentos. Era somente assim. Sob o peso agridoce do silêncio; sob a doce cumplicidade do que chamam de loucura; sob o plágio da indecência da primeira mulher; sob o ventre inchado de algum tipo de futuro; que Carol partiu.

Em tardes mansas de agosto, enquanto a terra desbota na luz do fim do dia, às vezes podemos ouvir seus passos. Duros, certeiros. Doces. Como um dia foram os passos de todas as mulheres.