segunda-feira, 9 de maio de 2011

Ela sem nome

Ela sem nome, sem cor. Ela sem gênero. Ela sem sexo. Ela sem espaço e sem tempo. Ela sem dor, sem sentir e sem pensar. Ela na varanda subitamente voltando, algo se rompendo como um graveto seco ao som súbito e preciso de um nome: Carol.

Linda se debruçou na varanda e insistiu num tom mais alto: Carol.

Carol olhou em sua direção, desatenta. Olhou as madeiras podres sob seus pés e lembrou de insistir com Jerry mais uma vez para que ele as trocasse.

- Os meninos estão com fome. Olhei na geladeira e só tem ovos e leite, acho que dá pra fazer panquecas. – Linda olhou assertivamente para sua amiga, como se ao resolver a questão da nutrição infantil resolvesse o desgosto que sentia quando, por exemplo, se deparava com a infelicidade escancarada de alguém na rua, se infiltrando em sua pacífica vida como uma nódoa no meio da toalha da mesa de jantar.

O rosto de Carol manteve-se impassível, como se a palavra panqueca fosse como qualquer outra, zunir, cantar, Uganda, asfalto. – Panquecas está ótimo.

Seriam panquecas, e as crianças ficariam felizes. Ao mesmo tempo em que a despensa alheia não sofreria graves perdas. Linda imperceptivelmente sorriu do seu triunfo. As panquecas eram, a um só tempo, adequadas à diplomacia comunitária e ao dever materno.

Porém, Carol não parecia dividir o mesmo semblante de neurose acalentada. Havia algo grave em seus olhos, e no modo como o braço esquerdo segurava o direito entre os peitos. Ela discretamente pensava coisas distantes de crianças, ovos, leites, Lindas, panquecas. Na verdade o que ela pensava estava longe de ser, concretamente, um pensamento. Era algo muito maior. Muito mais branco. Enquanto Linda expelia simples verdades com olhos elétricos e mudos, ela sentia. Primeiro em partes, sutilmente, com os pelos, talvez o nariz. E então aos poucos com o corpo todo, até que algo sólido cinza fluído invadisse tudo o que restasse de sua calma e a deixasse, não com os olhos de uma mulher infeliz, ou frágil, ou frustrada, mas sim como uma mulher distante. Em luto presente numa vida que não parecia lhe pertencer.

Frente ao desconfortável silêncio que sufocava a varanda, Linda voltou à cozinha. Carol ouviu o barulho dos eletrodomésticos como se fossem uma canção longínqua, proveniente de quando, em outras vidas, habitara povos desconhecidos. Ela deixou o som metálico ressoar contra as paredes e contra seus ouvidos, embora já não esperasse mais nada.

Como se ela mesma fosse o prolongamento dessas antigas melodias ela começou a andar, deixando marcas na rua de terra. O ritmo de seus passos pareciam adequados. O som dos pés contra a terra recontando uma mesma história tantas vezes vivida. O cheiro do eucalipto no caminho não a lembrou de tantos anos vividos sob o mesmo teto de copa de árvores, mas prometeu novas curvas e acontecimentos. Era somente assim. Sob o peso agridoce do silêncio; sob a doce cumplicidade do que chamam de loucura; sob o plágio da indecência da primeira mulher; sob o ventre inchado de algum tipo de futuro; que Carol partiu.

Em tardes mansas de agosto, enquanto a terra desbota na luz do fim do dia, às vezes podemos ouvir seus passos. Duros, certeiros. Doces. Como um dia foram os passos de todas as mulheres.

Nenhum comentário: