terça-feira, 7 de junho de 2011

Sorriso fino

Aguardou pacientemente. As folhas da samambaia deslizavam quase até o chão. A luz tocava veludo em cada coisa daquela enorme sala. Sua xícara de café esperava negras marcas sob a toalha de feltro. A noite, essa mulher corpulenta, o vigiava da janela. Tudo o que ele fazia, tudo o que ele podia fazer, era esperar.
Talvez esperar as cadeiras se arrastando no chão. Talvez esperar que o cálice de qualquer coisa forte finalmente fizesse efeito. Esperar o dia? Talvez. Esperar calmamente, sem nenhum resquício da pressa que o outro teve ao sair.
Agora que o tempo escorria por seus dedos com a mesma aspereza da areia, percebera que tinha perdido a conta. Era possível que tudo tivesse acontecido ontem: e então todas essas coisas o fitando, sem sentido, sem nome, fúteis coisas. Mas olhava para a foto amaecendo na janela, e pensava que deveria fazer mais tempo. Era possível que fizesse um ano, era possível que tudo tivesse acontecido há décadas. E os dois rindo um para o outro, sem nem saber por que, amarelando na janela da sala.
A sala era grande demais, do tamanho de um mundo. Ele se movia como se dela fizesse parte. Suas coxas, lentas como a água (era a chuva, que nunca mais parou de cair). Seus olhos cegos, adivinhando o lugar de cada coisa. As mãos, ainda desajeitadas, mesmo depois de tanto tempo.
Ele, que certa feita se chamara Rafael, de todas as vastas coisas que fazia, agora faz quase nada. Agora, se alimenta exclusivamente de tomates, amoras e mangas, plantadas antes de tudo. E quando come tomates gosta de mordê-los com voracidade, como um cão atormentado pela raiva. Amoras, gosta de deixar escorrer seu sangue, pelas mãos, pela boca, pelo pescoço, pelo corpo inteiro até chegar no chão (dias de vampiro, ou lobisomem). Nos dias de manga, gosta de romper a pele delicadamente, separando a carne densa do caroço. Como um cirurgião, cheio de minúcias, sem nunca temer desfazer-se dos aspectos desnecessários do corpo.
Esses personagens o distraiam da forma escura e arredondada que se tornou depois do fato. Nesses efêmeros momentos podia fingir ter nome, idade, gosto, textura. Podia fingir ter dentes para morder, e que eles ficavam dentro da sua boca. Podia fingir que os braços caiam ao longo do tronco, saídos do ombro em direção ao chão. Podia tentar enganar-se que de fato sua cabeça ficava exatamente oposta aos pés. Quando se deixava surpreender pelo próprio corpo era quase como se risse novamente, brincadeiras tais como dedos navegadores descobrindo as pintas do outro. Mas então, se por acaso relembrava histórias assim, voltava rapidamente a sua desforma - todos os órgãos flutuando pela casa.
Tinha também a hora da noite virar dia. Quarenta e dois minutos que de tão bonitos, o devolviam temporário a ele. Foi num desses momentos que sorrateiramente entendeu o começo do fato. Pensara no outro, todos os detalhes, as pequenas delícias e as grandes dores. Começara no fim: era como um filme rebobinando. Via o outro através da janela, no mais longe do visível, voltando aos pouquinhos de marcha ré. O viu entrando com um rosto sem nenhum amor. Ouviu o grito longo e profundo, como um lobo procurando a morte. Viu ele sentado com as mãos na cabeça, silencioso por dias. Viu a última briga. Viu todas as brigas até a primeira. Viu o amor demorado das pazes feitas. Também viu o amor violento, suas costas sangrando, seu rosto ardendo de gozo, como um lobo devorando sua presa. Viu histórias sendo lidas em voz alta. Ouviu canções de tanto tempo que deixaram seus olhos um pouco úmidos, como um lobo velho. Viu a primeira vez que ele ali entrara. Viu ele em outra sala, se afastando gradual de um beijo. Viu, e então tudo entendeu, o começo do começo de tudo, a culpa de todo o fato, a ternura muito mais violenta que o adeus. Enquanto o outro se afastava, cada vez mais longe, viu ele no meio da outra sala: o rosto sério aos poucos se desfazendo, desenhando aos poucos, bem lento, as bordas dos lábios, a mandíbula dançando, a pele esticando ali, relaxando ali, viu no desenho de um momento o culpado de tudo, criminoso, no meio da cara, o tal do seu sorriso fino.
Rafael se pôs de pé e uivou para o nascer do dia. Deu espaço para o sol subir e então ficou silencioso, como um lobo sábio.

Um comentário:

Anônimo disse...

caramba, flores...