domingo, 3 de julho de 2011

Belvedere

Engolir saliva quente, em Belvedere. Limpar o suor do buço, em Belvedere. Ignorar os mosquitos, em Belvedere. Ignorar o silêncio, em Belvedere. Ignorar Belvedere.

Esmurrou a mesa mais uma vez tentando esmagar um mosquito. Antes os qualificava por classe e cor: os miúdos, os peixes-grandes, os chicanos, os pretos. Agora os nomeia. Cravou o mosquito entre o dedo indicador e o polegar e disse para ninguém ouvir: Ismael. Se alguém o chama, será Ismael.

Às vezes pensava que poderia esmurrar quantos mosquitos quisesse. Ou pior, nomeá-los. Naquela sala, cujos atributos eram estrangeiros e passageiros. A sala amarela de quentura. A sala pingando de suor. A sala solidão enlouquecedora. A sala dando nomes aos mosquitos. Às vezes pensava se de fato aquelas coisas todas aconteciam, uma vez que ninguém as testemunhava.

Sua relação rudimentar com o mundo consistia em analisar pontos brancos num papel fotossensível em escala de cinza. Anotar a graduação em cada margem, circular os prováveis pontos de convergência, ficcionalizar a terra, e o pasto.

Todas as manhãs recebia por um buraco da porta o café e as fotos. Todo desjejum, três pontos brancos à direita e um café seco. Às tardes, três pontos brancos à direita e um emaranhado comestível. Às noites sopa, um café, e três pontos brancos à direita.

Devolvia os talheres e pratos pelo buraco da porta, e colocava os mosquitos organizados por ordem alfabética no canto da sala. Arthur – porque era um rei. Bruno – um nome digno para um preto. Cassiana – um gladiador fêmea.

Então voltava a limpar o suor do buço, afastar o silêncio dos ouvidos, chamar os mosquitos, engolir café seco.

Deitava-se no beliche, embora nunca houvesse ninguém para dividi-lo com ele, e as estrelas o tingiam de som. Lembrava-se de quando era um príncipe na Sarcóvia e imaginava se alguém ali saberia. Então ria, desanuviado, pois com a mesma calma com que nomeava mosquitos, sabia que não precisavam saber que ele era um rei, para que fosse. Lembrou-se dos rituais de caça ao bode. Dos colares de coral, e anéis de concha. Lembrou-se infinito dos prazeres da selva, e do caldo grosso e bem quente servido em volta de caça. Lembrou-se de sua noiva, os cabelos trançando alegria suave, o perfume distraído da alfazema.

Quando acordava embebido na secura úmida do mediterrâneo de suas férias, abria os olhos esperando a delicadeza do alecrim vencer-vênus a carne tenra do carneiro. Depois que os pedaços graúdos eram servidos, ele e alguns outros se sentavam na relva, esperando os mosquitos retardatários povoarem os restos de comida. O zumbido contínuo de suas asas rimava com a saciedade e o calor modorrento. Gostava de sentir o gosto contínuo da carne bruta, a coceira da grama sobre a pele, os primeiros insetos chegando – um barulho distante chacoalhando entre as ondas, se misturando entre os sons da areia e do vento, tornando-se lento, aproximando-se como uma massa, um zumbido inteiro como uma montanha, de insetos anônimos, de mosquitos, mosquitos desordenados, mosquitos do tempo em que mosquitos não tinham nome.

Belvedere. O gosto agridoce da palavra combinava com o lugar. Belvedere. Todos os dias pontos brancos à direita em Belvedere. Engolir saliva quente, em Belvedere. Limpar o suor do buço, em Belvedere. Ignorar os mosquitos, em Belvedere. Ignorar o silêncio, em Belvedere. Ignorar Belvedere.