quinta-feira, 26 de abril de 2012

Casa 8


reza a lenda. nada reza. se rezasse aqui nessa casa não entrava. esse relicário aí na entrada é só pra afastar o santo, que tem medo de imagem. essa luz amarela só ilumina o vazio da queda. quantos homens e quantas mulheres ajoelhados nesse chão que você pisa não quedaram. se você conseguisse enxergar na escuridão dessa luz amarela ia ver as marcas: vômito, náusea, sangue, gozo, pus. você ia ver e algo dentro dessa sua escuridão de luz amarela ia se pungir. de nojo ou tesão. ou os dois juntos. você com esses seus olhos de menina. olhos de mulher dentro dos olhos de menina dentro dos olhos de menino dentro dos olhos de ancião dentro dos olhos de menina. você não me engana. eu conheço o seu nojo e o seu tesão. sei de cor o seu pior. já vi na pele branquinha de tantas meninas como você. caídas nesse chão. não pedindo por mais nada. não pedindo por perdão. não pedindo por água. talvez por um pau. ou um dedo. uma língua. um corte rente no macio das pernas. eu vi homens velhos também. que vieram aprumados. desgostosos e descrentes. eles também caíram. e perderam o medo da minha cara alaranjada e eufórica. cara de cavalo da madrugada. eles todos sentiram o gosto acre dessa bebida. sentiram a dor e o prazer dessas mordidas de bicho da terra. se sentiram tão perto da morte, e do prazer lento e moroso e escuro da morte, se sentiram tão perto da cor da vida, marrom fezes, casca de ferida, coagulo, coisa vencida, que nunca voltaram. eu nunca mais chamei eles. eles abraçaram a própria escuridão e sairam lívidos e leves. eu vi nos seus olhos o fundo do desejo. eu ouvi a voz firme do avesso do amor. eu senti com meus pés quando você entrou o rumor da terra ordenando a sua presença. foi por isso que eu te chamei.

Casa 6



   Libidinoso, tocava as bordas das máquinas, se escondia das persianas para roçar seus braços gordos e suados por sobre a prensa, entre o scanner, atrás da porta.
   “Você reclama, mas quando eu me for, vai virar um bebum”. Disse ela num dia que parecia mais leve, quiçá, talvez, até alegre. Seria óbvio que ele bebesse. Entre os papéis amarelados, nos grandes espaços, em tudo que denunciava sua solidão sórdida.
   Talvez ele não bebesse para não dar a ela essa alegria. Embora todos soubessem que ela nunca mais se afetaria por nada que concernisse esse universo balofo, essa emoção cheia de sebo. Quando ela começou a trabalhar lá foi quase uma brincadeira, todos sempre achavam que ela não precisava do dinheiro, preferia, ao invés, poder inverter esse pobre homem. Virá-lo de ponta cabeça e deixar vazar dos seus bolsos todo dinheiro – até o mais ínfimo trocado, e também os documentos, e ainda por cima os clips, e se sobrassem os palitos de dente, guardanapos e propagandas enganosas.
   Ela me lembra as mulheres que os homens que ainda se aventuram na umidade chamam de demônios. Ora, nem tão ao norte, nem tão ao sul. Ela chegando com suas pastas e seu cabelo preso em coque. Ela chegando com sua saia quase curta quase longa. Se via o nervosismo no modo como ela abria a porta, como na primeira vez tentou se anunciar ao vento, e como algo pudico e puro se cingiu ao ver aquela nódoa imensa se apresentando “Carlos, pode ir entrando, é por aqui”.
   Ele apresentava os cômodos, as prateleiras e os incômodos – dela, é claro. Tudo que via era um emaranhado de sujeira e tristeza. O excesso de pó ali recendia a solidão amontoada.
   Pensando bem, talvez ela simplesmente quisesse fazer bem para ele, consertar essa máquina obsoleta, essa máquina de escrever da década de 10.
   Agora, tentando tirar o pó infindável de cima dos arquivos, ele roça os dedos gorduchos em pardo e relembra. Não, ela não era maldosa. Talvez fosse pura. Quase tão pura quanto ele.
   Aos poucos  ela foi fazendo suas vontades. Trazia cafés e torresmos quando voltava do almoço. Limpava sua sala apenas quando ele estava ali, para não invadir o seu senso de privacidade, e então conversavam sobre Gardel, que talvez fosse o único interesse em comum dos dois. 
   Acho que ele começou a fazer bem para a solidão dela, de menina com família longe. E ela, é claro, começou a povoar os pântanos daquele homem.
   Ela voltava para casa, tomava um banho forte – para limpar aquele lugar da pele dela, cozinhava sua porção para um, e ia dormir pensando na sua missão, de tornar aquela coisa mais humana, mais feminina. Talvez ela tenha se sentido na obrigação, que toda mulher sente uma hora ou outra, de cuidar de um homem totalmente órfão de cuidados.
   Ele voltava para a quitinete dele, e desmanchava no sofá. Se era dia de pizza nova tomava banho, se comeria os restos do dia anterior não precisava. Via tv, vivia sonhos vazios, sonhos ausentes, e se recriminava quando pensava nas coxas dela.
   Se alguém disser assertivamente que ela é uma mulher má, eu diria que aquela época não se percebia. Porém, também diria, que toda mulher se sente na obrigação, uma hora ou outra, de ser má.